Sequestraram o storytelling! Como o marketing virou fábrica de mentiras metonímicas
O marketing metonímico funciona assim: você pega um detalhe qualquer da vida de uma pessoa — o trauma, a superação, o antes e depois — e transforma isso na essência inteira da história dela.
Você já percebeu como, hoje em dia, todo mundo virou “história”? Você vai ao LinkedIn e lá está o sujeito contando como superou a pobreza, virou estagiário da Ambev e agora “inspira pessoas”. No Instagram, tem uma moça contando como foi rejeitada na adolescência, emagreceu, virou influenciadora fitness e agora “transforma vidas”. No YouTube, um coach conta como largou tudo, morou no carro por três dias e agora é “prova de que tudo é possível”. E você, sentado aí, lendo isso, começa a se perguntar: “Será que eu também não deveria ter uma narrativa inspiradora?”
O ambiente inteiro te empurra pra isso. Porque, hoje, se você não tem uma narrativa impactante, com trauma, reviravolta e lição de moral, você não vale nada. Não é ninguém. É só mais um perdido no algoritmo.
Repare bem: você não fala mais da sua história com consciência. Você performou uma versão dela. E o mais grave — você passou a acreditar nessa versão. Aquilo que era um detalhe virou o todo. Um fracasso virou sua identidade. Um sucesso virou sua essência. Você metonimizou a sua alma. E fez isso achando que estava “se comunicando melhor”.
É esse o ponto: você não está se expressando — está se vendendo. Não está narrando sua história — está criando um personagem com fins de convencimento. Está moldando a verdade para caber na embalagem emocional que o marketing exige. E o resultado é esse que vemos: um exército de gente artificial, encenando a própria biografia como se fosse comercial de margarina, enquanto a entrega real murcha por falta de realidade.
Nós vivemos numa época em que até o storytelling, essa capacidade de transmitir sentido, de comunicar verdades humanas por meio de histórias, foi sequestrada por utilitaristas profissionais a serviço do mercado. E o que eles fizeram com isso? Transformaram num truque de persuasão. Numa técnica para vender. Numa forma de meter a mão no seu bolso ou na sua alma. Em vez de contar histórias que expressem experiências reais e complexas, passaram a fabricar narrativas metonímicas, as quais são versões caricaturais da vida — embaladas com truques emocionais, números simulados e final de superação heroica.
Esse é o que chamo de marketing metonímico. Ele funciona mais ou menos assim: você pega um detalhe qualquer da vida de uma pessoa — o trauma, a superação, o produto que ela comprou, o antes e depois — e transforma isso na essência inteira da história dela.
Você edita a complexidade da existência, joga fora a ambiguidade, remove o sofrimento verdadeiro, esconde a alma — e fica só com a embalagem. Um enlatado emocional para convencer você a comprar, seguir ou se sentir inspirado. Mas tudo o que você está consumindo ali é mentira metonímica, vendida como verdade narrativa.
Storytelling não é vender sensação, é revelar sentido. A verdadeira narrativa humana, o verdadeiro storytelling — que está em Homero, em Dostoiévski, em Shakespeare, nos Evangelhos —, sempre foi um esforço de revelar a unidade misteriosa da existência humana. Uma unidade feita de tragédia, de ambivalência, de escolhas morais e de experiências que não cabem em post de Instagram. A narrativa é o modo como compreendemos a nós mesmos. É o processo de juntar as partes da sua história e perguntar: “O que isso significa na vida do cliente? O que me foi pedido além da realidade? O que minto, omito e finjo ser e entregar? O que ainda me resta para ter uma narrativa coesa?”
Mas o marketing metonímico não quer isso. Ele quer que você pense que a sua vida se resolve num “antes e depois”. Ele quer reduzir tudo a uma curva ascendente de superação — ou a um trauma mágico que se resolve ao comprar um produto, fazer um curso, mudar de mindset. Ele vende o storytelling como se fosse suco concentrado de emoção, e não como a linguagem da alma.
Esse tipo de storytelling falso é parte da narrativa mecânica, a narrativa do boneco de corda. Ela não nasce da memória, nem da imaginação coletiva, nem da experiência interior. Ela nasce do briefing. Ela é feita sob demanda para manipular expectativas — não para transmitir verdade. Isso, meus caros, não é narrativa. É propaganda. É fraude emocional. É metonímia performática com trilha sonora.
O uso metonímico do storytelling não é só uma técnica de marketing. Ele é o sintoma da decomposição da consciência histórica da civilização. As pessoas já não têm mais experiência de si. Elas têm clipes de si. Elas não vivem histórias: vivem slogans. Elas não carregam destinos: carregam bio do Instagram.
E o marketing — que hoje manda no jornalismo, na política, na educação e até na religião — capitalizou essa falência. Ele percebeu que o homem moderno já não sabe mais contar sua história. Então, oferece um enredo pronto. Uma identidade pronta. Um drama com roteiro. Uma história de superação para você repetir como papagaio na entrevista de emprego ou no curso de coaching.
O sujeito, em vez de pensar: “Quem eu sou? O que me foi dado viver? O que me cabe fazer? Como posso vender algo de impacto real?”, ele pensa: “Qual narrativa eu posso usar para ser aceito no mercado?” Resultado: ele inventa um personagem, surfa em hypes, vive de trends. Ele escolhe uma dor, uma superação, uma frase de efeito — e passa a viver metonimicamente dentro disso, como se aquela parte fosse o todo da sua alma.
E isso é o fim do ser humano como ser com narrativas propositivas. Porque quem substitui sua história real por um pitch comercial, perdeu toda sua identidade natural — e ainda acha bonito.
O que se precisa fazer, portanto, é resgatar o valor da narrativa autentica, inteira e vividamente enraizada na realidade. A narrativa que não é instrumento de persuasão, mas expressão de consciência. A narrativa que não simplifica, mas revela. A narrativa que não finge que tudo se resolve com truque de câmeras e mindset positivo, mas que tem coragem de mostrar se posicionar diante do trágico, do irreparável, do pecado, da promessa, da memória, do chamado a vida real.
Para isso, você tem que calar os slogans. Abandonar os roteiros. Esquecer os arquétipos de marketing. E começar a escrever a história da sua vida como se ela fosse realmente sua — e não uma peça publicitária. Não pense em “marca pessoal”, pense em vocação. Não pense em “autoridade”, pense em verdade. Não pense em storytelling como técnica, mas como destino.
Para lutar contra o marketing metonímico, a primeira coisa que precisa entender é que não se vence a mentira imitando sua forma com conteúdo verdadeiro — isso é exatamente o que ela quer que você faça, porque o jogo já está viciado desde as regras.
O seu papel não é disputar com slogans, mas reabrir o espaço da realidade, onde a linguagem não serve para seduzir, mas para expressar e compreender. Isso exige coragem para não viralizar, paciência para falar com poucos, e dignidade para manter-se fiel à narrativa inteira da vida — com suas zonas escuras, suas ambiguidades e suas contradições — mesmo que isso custe audiência. Você não precisa só de volume de público, precisa de presença real, de consciência unificada e de uma linguagem que não tenha vergonha de dizer a verdade ainda que ela seja feia, improvável ou não monetizável inicialmente. Só aí começa a libertação.
Grandes histórias que resistem até hoje são aquelas que não foram escritas para caber num pitch, mas para carregar o peso da alma humana inteira. Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski, que não reduz nenhum personagem a um rótulo e mergulha no abismo moral da existência; Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, onde Riobaldo é homem, diabo, dúvida, promessa e poesia, tudo junto, sem simplificação; A Lista de Schindler, no cinema, que não transforma o horror do Holocausto em espetáculo, mas em memória dilacerante; e até peças publicitárias como a clássica campanha da Johnnie Walker, The Man Who Walked Around the World, que funciona até hoje não por reduzir a trajetória a uma fórmula, mas por apresentá-la como jornada, com tempo, silêncio, tensão e verdade simbólica. Todas essas histórias têm em comum uma coisa: elas não te manipulam — elas te chamam à consciência.
O resto — todo esse papo de storytelling que promete engajamento, conversão, sucesso — é metonímia digital. E metonímia, meu amigo, não é pensamento. É fuga. Se você quer pensar, se você quer viver de verdade, comece por contar sua história inteira — não a versão que vende, mas a que salva. Porque é só essa que, um dia, poderá ser lida diante de Deus como a narrativa de uma alma que não traiu a si mesma. E isso, sim, é o que importa.
Mergulhe na arte do storytelling aprendendo mais num curso completo ou me deixando te ajudar a transformar a história do seu negócio, na prática, a maneira como sua marca é percebida, sentida e lembrada. Porque no final, as melhores marcas são aquelas que contam as melhores histórias.
@lealmurillo | Jornalista | Top Voice LinkedIn | Storytelling e Conteúdo
Muito interessante o seu artigo, Murillo. Um alerta importante! Da minha parte, posso dizer que hoje, com a minha news aqui no Substack, eu achei o meu lugar. Digo isso porque sempre quis contar a minha história e não sabia como. Cheguei até a fazer um curso de storytelling mas não emplacou depois, não era o momento, e eu estava sofrendo com conteúdos fragmentados no Instagram. Concordo com tudo o que disse, tem muitos utilitaritas mesmo, tá cheio, é o que mais vemos. Tem aqui no Substack também. Mas agora eu tô focado em mim, sem me preocupar com o número de inscritos. e na edição #9 da minha news e conseguindo manter a consistência. Mas acima de tudo achei um lugar para contar a minha história, e estou muito feliz com isso. Obrigado pelo artigo esclarecedor. Abração.